Natura, um seguro de R$ 7,90 e a gambiarra que vale bilhões para a periferia

Sou pedagoga, ex-professora de creche na Brasilândia. Durante anos acreditei que beleza era luxo porque me ensinaram isso. Quando o mercado traz a beleza de forma luxuosa, estrategicamente levada a um patamar de acesso limitado, ele limita principalmente pessoas como eu a pensar que aquilo não é feito para mim. No sentido de que eu não tenho condições e me é ensinado culturalmente que eu nem preciso, diminuindo assim meu índice de frustração.

Minha mãe sempre me viu linda sem nenhuma maquiagem, mas não por não entender que eu podia estar ainda mais linda. Ela foi ensinada que estes itens não fazem parte da prioridade e da possibilidade financeira da nossa realidade. É uma engenharia social perfeita: quem não pode comprar não deve nem querer.

Quando a Natura me convidou para conhecer o relacionamento do programa Criadores da Beleza, fui cética. Multinacional chamando favelada para mostrar “inclusão”? Já vi esse filme. Mas o que vi me surpreendeu.

O Criadores da Beleza transforma consultoras em criadoras de conteúdo profissionais. O programa oferece trilha gratuita de capacitação certificada pela Escola Natura e Avon, lives quinzenais no canal TV Consultoria no YouTube, e ferramentas como assistente de inteligência artificial no WhatsApp para planejar posts, templates exclusivos no Canva, funcionalidades para potencializar vendas digitais.

Cada consultora ganha sua loja online personalizada, pagamento integrado e histórico de compras. Sem necessidade de estoque ou pedido mínimo. Atualmente, 600 consultoras já participam do programa no Brasil.

Consultoras treinadas vendem 2,3 vezes mais, e 42% dos pedidos são “influenciados por conteúdo” (essa métrica, no entanto, inclui qualquer menção nas redes; mandar foto do produto no WhatsApp já vira “influência digital”).

O programa de criação de conteúdo também exige celular bom, internet estável, tempo para produzir. Luxos que nem toda consultora da periferia tem.

A Natura também lançou o seguro Saúde Protegida. Por R$ 7,90 mensais, as consultoras têm acesso a telemedicina, consultas, exames laboratoriais e de imagem com descontos, check-ups anuais voltados ao cuidado da mulher e descontos em medicamentos. Para estender a três familiares, o valor sobe para R$ 14,90 mensais.

É um custo aparentemente baixa, porém, é preciso considerar que R$ 7,90 ainda representa 1,5% do salário mínimo. Para quem ganha R$ 500 mensais vendendo cosmético, cada real conta. É acessível, mas não é irrelevante no orçamento.

A empresa faturou R$ 93,7 milhões em 2024 só com produtos sociais, onde consultoras abrem mão da comissão para financiar bolsas de estudo. Esse recurso beneficiou 488 mil consultoras na América Latina. No Brasil, 78 mil foram impactadas pelo letramento digital este ano.

Minha análise? É capitalismo, não caridade. Enquanto bancos tradicionais ignoram quem ganha menos de R$ 2 mil, a Natura criou um ecossistema financeiro que começa com batom e termina em seguro saúde. É inclusão financeira disfarçada de venda direta.

Para nós da periferia, funciona porque oferece acesso. Para a empresa, funciona porque transforma necessidade social em receita recorrente. Cada consultora digitalizada multiplica o faturamento. Cada mulher com acesso à saúde vende mais e falta menos.

Além disso, o modelo valida a “gambiarra econômica” que fazemos todos todo dia aqui na favela sem nem saber que tem nome bonito. É quando minha vizinha vende marmita na porta de casa porque não tem dinheiro para abrir restaurante, mas descobre que entrega melhor comida que muito lugar chique. É quando eu aprendo a usar o celular para vender produto porque não tenho loja física, e acabo dominando marketing digital melhor que muito empresário.

A gambiarra é a nossa criatividade forçada pela necessidade. Não temos capital, então inventamos jeito. Não temos estrutura, então improvisamos. Não temos acesso ao mercado formal, então criamos o nosso próprio mercado. O mercado formal chama isso de “inovação disruptiva” e “economia criativa”. A gente chama de necessidade. Mas no final, é a mesma coisa: encontrar jeito de fazer dinheiro com o que tem na mão.

A pergunta que fica: quantas outras empresas poderiam lucrar bilhões resolvendo problemas reais da população ao invés de criar necessidades artificiais para classe alta? A Natura descobriu que a periferia não é “mercado emergente”. É mercado negligenciado com potencial gigantesco.

Continuarei sendo a pedagoga cética da Brasilândia. Mas agora sei que nossa “gambiarra” para sobreviver vale mais que imaginávamos. E que executivo inteligente deveria prestar atenção nisso.

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