Caroço de açaí vira energia limpa e renda para famílias em Barcarena


Em Barcarena, no nordeste do Pará, o que antes era resíduo virou energia. O caroço de açaí, antes descartado em terrenos baldios e ruas da cidade, hoje alimenta fornos industriais, gera renda e ajuda a reduzir emissões de carbono. A transformação é resultado de uma parceria entre a mineradora Artemyn e a empresa de energia ComBio, que desenvolveram uma tecnologia para converter o caroço em biomassa sustentável — um modelo que une inovação, sustentabilidade e impacto social na Amazônia.

A iniciativa já reaproveitou mais de 153 mil toneladas de caroço de açaí, evitando a emissão de cerca de 265 mil toneladas de CO₂ equivalente no meio ambiente.

Muito mais que um alimento, o açaí representa no Pará cultura, identidade e economia. Presente em todas as mesas, o fruto é também símbolo de um desafio ambiental crescente: o descarte do caroço, que corresponde a cerca de 80% da fruta. Com a expansão da produção e do consumo, toneladas desse resíduo são descartadas de forma irregular, gerando acúmulo de lixo orgânico e poluição urbana.

Para mudar esse cenário, a Artemyn — mineradora que atua na extração e beneficiamento de caulim na região — implementou uma solução inédita: usar o caroço do açaí como combustível renovável nas caldeiras que movimentam sua operação industrial. O caulim produzido em Barcarena é exportado para Europa, América do Norte e América do Sul, onde é usado na fabricação de papel, cerâmica, tintas e plásticos. E, como toda atividade mineral, a operação exige alto consumo de energia — que antes era dependente de combustíveis fósseis.

Da necessidade ao pioneirismo

O projeto nasceu em 2013, motivado inicialmente pela busca por eficiência e redução de custos. Segundo Maurício Rojas, gerente de Energia da Artemyn, o impulso econômico veio acompanhado de uma transformação ambiental.

“A iniciativa foi uma forma de procurar alternativas ao combustível que normalmente usamos, movida pela necessidade de reduzir custos. O motor principal da iniciativa foi a redução de custos — mas o ganho ambiental veio junto”, afirma.

A localização foi determinante. A abundância de caroço de açaí na região tornava o insumo acessível e viável logisticamente.

“Quando você projeta um projeto de biomassa, a ideia é pensar no que tem perto de você. Sendo uma mineradora em Barcarena, fazia sentido aproveitar as oportunidades locais”, explica o gerente.

Economia circular amazônica

Quando chegou a Barcarena há cerca de dez anos, a ComBio encontrou um problema ambiental que logo se transformaria em oportunidade.

Para Camilla Albani, diretora de Gente, Gestão, Sustentabilidade e Comunicação da ComBio, o descarte do caroço era um desafio ambiental urgente. “Identificamos um desafio significativo: o descarte inadequado do caroço de açaí, um resíduo abundante pela intensa produção local”, lembra.

Após estudos técnicos, a empresa se tornou pioneira no uso do caroço como fonte de energia térmica renovável, estruturando uma cadeia produtiva sustentável que hoje envolve dezenas de pequenos empreendedores.

“Nosso papel vai além do fornecimento de energia: estruturamos toda uma cadeia em torno da biomassa que consumimos, com acompanhamento técnico e boas práticas trabalhistas e ambientais”, complementa Camilla.

Desafios técnicos e inovação local

O uso do caroço de açaí como biomassa exigiu uma série de adaptações técnicas.

“Por ser redondo e muito denso, o caroço apresentou desafios. Em nossos primeiros testes, ele rolava na esteira que alimenta a caldeira. Tivemos que redesenhar a inclinação e os mecanismos de contenção”, relata Camilla.

Na Artemyn, o desafio foi incorporar o novo sistema energético à estrutura industrial existente.

“Precisávamos de alguém que tivesse capacidade de pegar uma ideia e transformar em instalação. A parceria com a ComBio foi essencial para superar os desafios de logística e operação”, destaca Rojas.

Resultados concretos: menos emissões, mais eficiência

Em operação plena desde 2015, o sistema substituiu quase totalmente o uso de combustíveis fósseis na planta da Artemyn.

“Com a caldeira de biomassa, praticamente paramos todas as caldeiras a óleo e passamos a operar com o caroço de açaí. Isso trouxe uma redução de cerca de 40% nas emissões e diminuiu significativamente nossos custos”, detalha Rojas.

Para Camilla Albani, a iniciativa gera benefícios econômicos, sociais e ambientais. “A biomassa do caroço já responde por 40% da matriz térmica do cliente, o que equivale a mil toneladas por mês. Os projetos da ComBio geram economia de até 40% em relação ao uso de fontes fósseis, com benefícios ambientais e sociais”, complementa.

A criação dessa rede local de fornecedores é, segundo ela, o ponto mais simbólico da iniciativa. “Compramos os caroços de pequenas empresas locais que coletam e transportam os resíduos. O que antes era um problema ambiental virou uma solução energética, social e econômica.”

Para os batedores de açaí, a mudança é visível

Roselia Oliveira, do ponto de venda “Açaí da Ilha”, lembra como era a rotina antes do projeto. “Antes, o caroço era jogado em um terreno baldio e a prefeitura cobrava pelo descarte. Agora a iniciativa facilitou muito o processo”, conta.

Para Fernandes da Silva, proprietário do “Açaí do Irmão”, o impacto foi imediato. “Ficava tudo espalhado na rua. Hoje, o recolhimento melhorou o ambiente e ainda gera uma renda extra”, comenta.

Transformação social e sustentabilidade

Nos bairros e ilhas de Barcarena, o projeto transformou o cotidiano de pequenos produtores. O que antes era lixo agora é fonte de renda e orgulho comunitário.

“Antes tínhamos que pagar para descartar o caroço. Agora, além de resolver o problema, o recolhimento gera uma renda extra”, reforça Roselia.

A biomassa de açaí e o futuro energético da Amazônia

Para o engenheiro florestal e doutor em Desenvolvimento Socioambiental Constantino Alcântara, o aproveitamento do caroço de açaí como biomassa é uma das estratégias mais promissoras para a transição energética na Amazônia.

“Um dos maiores desafios da sustentabilidade é o volume de resíduos que não são reaproveitados. Incorporar esses materiais em novos processos produtivos reduz a poluição e fortalece a economia verde”, explica.

Segundo ele, o potencial do caroço é imenso. “O processamento da fruta gera um volume grande e permanente de sementes, com alto poder poluidor. Aproveitá-las na geração de energia, na produção de insumos, cosméticos ou até materiais de construção é uma forma de apoiar a economia circular e reduzir emissões”, afirma.

O especialista ressalta que o modelo pode inspirar políticas públicas de descarbonização na região. “É uma estratégia que gera ocupação, renda e sustentabilidade. Reincorpora um grande volume de resíduos no sistema produtivo, contribuindo com a economia verde e o desenvolvimento socioambiental da Amazônia.”

Transição energética e COP30

A experiência em Barcarena antecipa o debate sobre minerais sustentáveis e transição energética, que deve ganhar força com a COP30 em Belém. A Artemyn já enxerga a biomassa como parte de uma estratégia mais ampla de eficiência e inovação.

“Não é porque o cenário da COP30 faz a gente agir diferente. Nós já temos uma postura socioambiental muito forte”, reforça Maurício. “A biomassa nos permitiu dar um salto: em um ano e meio, conseguimos reduzir 40% das emissões — algo que levaríamos anos para alcançar apenas com pequenas melhorias”, comenta.

Da floresta à indústria: um novo ciclo para o açaí

O caso de Barcarena mostra como inovação e sustentabilidade podem caminhar juntas na Amazônia. A parceria entre Artemyn e ComBio transformou um problema urbano em solução energética e social, fortalecendo um modelo de economia circular que une floresta, comunidade e indústria.

Em uma região onde o açaí é símbolo de identidade e sustento, o caroço que antes poluía as ruas agora ajuda a alimentar caldeiras, gerar energia limpa e inspirar novos caminhos para o desenvolvimento sustentável da Amazônia.

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