Meu amigo Arlindo Cruz, quanta saudade!

No dia 8 de agosto de 2025 perdemos o Sambista Perfeito. O menino, nascido e crescido no subúrbio do Rio que nunca se afastou das suas raízes e pôs nas suas letras toda a energia do carioca do morro. A ginga, a malandragem, o bom humor, gritando com orgulho que seu nome é favela. Potente e criativa. 

O garoto inquieto, atento aos mais velhos, amante do samba desde a barriga da mãe, dona Aracy. Você fez parte de uma linhagem nobre que começou nas tias da Pequena África, da Praça Onze, dos arredores do Sambódromo.

Você nunca deixou de reverenciar quem veio antes, e não tem um álbum seu que não tenha um agradecimento a Candeia, seu padrinho musical que você tanto admirava. Você acabou herdando o dom de versar com uma naturalidade que ninguém sabe de onde vem. 

Aqueles que prestam atenção nas suas letras conseguem decifrar um pouco do seu enigma. Percebem sua religiosidade, o peso do axé na sua vida, algo verdadeiro e intenso, presente no seu dia a dia, das refeições aos dias de festa, dos dias de se guardar para os santos.

Você era filho de Xangô, mas no seu coração tinha espaço para Ogum, Oxóssi, Oxalá e Iemanjá. Talvez viesse daí inclusive o seu ecletismo musical. O seu samba mestiço, que conversava com o hip hop, com a MPB, o reggae e os ritmos da Bahia. Por isso, o portão da sua casa estava sempre escancarado para a entrada de novas parcerias. 

Poucos sabem que você estudou desde os 15 anos na Aeronáutica, em Barbacena, tendo um inusitado colega de turma: Marcelo Tas! Sim, ele mesmo, que muito antes do CQC, foi PQD com você, na Escola Preparatória de Cadetes do Ar. Só não sei se chegaram a fazer algum salto duplo. 

Mas depois dali é que você realmente voou. Primeiro pousou na tamarineira da quadra do Cacique de Ramos, onde, junto com Zeca Pagodinho, Ubirany, Jorge Aragão, Sombrinha e tantos outros, foi cantor e compositor do lendário Fundo de Quintal. Beth Carvalho reconheceu o seu valor e jogou um holofote na sua obra. Mais tarde, Regina Casé te colocou no palco do Esquenta! E o Brasil se rendeu ao seu carisma. 

Compositor de uma fertilidade incomparável. Foram mais de 800 canções gravadas! Qualquer dia, qualquer hora, quando parecia distraído, era quando estava mais focado em comunicação direta com os deuses que lhe sopravam belos versos. Candeia, Monarco, Marcelo D2, Rogê, Martinho da Vila, Dudu Nobre, Mart’Nália, Xande de Pilares… sempre cercado de bambas.

Tive a felicidade de te conhecer através do Zeca Pagodinho. Zeca gravava uma música num estúdio em Copacabana e eu fui lá confraternizar. De repente, apareceu você, simpático, bonachão, receptivo a um bom papo. Tomei coragem e confessei que tinha um sonho: fazer um samba com você. Era muita ousadia. 

De repente, ouvi o seu “sim”. É sério? Você topa mesmo? Não é papo de carioca? Firmeza. 

A partir dali eu, você e meu parceiro Mu Chebabi passamos a nos encontrar no quintal da sua casa no Recreio dos Bandeirantes para ver se saía alguma coisa. Eu tinha feito meu dever de casa e levei praticamente uma redação, quadrada, sem rima, com basicamente uma ideia. Você com toda a paciência, foi burilando os versos, arredondando a ideia, junto com uma melodia incipiente. 

Os encontros foram ficando frequentes. A intimidade cresceu. A rivalidade do seu Flamengo com o meu Botafogo alimentou a chama da gozação. Meu time não passava por um bom momento e você zoava: “E em algum momento teve bem?” Pena você não estar aqui agora para te dar a forra. É tempo de Botafogo!

Você me levou pela mão para a quadra do Império Serrano, me apresentou seus músicos. Eu, Ana, você, Babi, nossos filhos viramos uma família. 

Um dia, você me mostrou o rascunho de um samba que era mais uma brincadeira com nomes de atores e atrizes da Globo: “A Renata sorria” (referência à Renata Sorrah), “Eu e Toni…erramos”, algo por aí. Aí te falei que a Globo podia gostar disso. Levei a ideia na emissora. Recebemos a encomenda de fazer um samba para apresentar a programação do ano seguinte. Assim surgiu em 2008, o Samba da Globalização. Foi um sucesso. De 2008 a 2012, a nova programação da emissora foi apresentada ao público, cada ano com um clipe diferente e uma versão da letra trazendo as novidades.

O dia em que me achei muito foi quando você me chamou na sua casa para contar uma novidade. Maria Rita ia se lançar no samba e encomendou umas músicas. E você me mostrou em primeira mão “O Que É o Amor”. Uma aula de um samba romântico, lírico, sem pieguice.  

Outro momento que guardo com carinho foi quando você me chamou para escrever contigo a letra de “Citações”, que você gravou no álbum “Batuques e Romances”. O poeta vai buscando citações de amor nos romances, nas belas canções, nos livros sagrados… e a conclusão era: “já virou indefinível nossa relação”…. Romance e humor na dose certa.  

Em 2016, o Rio ganhou um presente. O belo clipe “Os Deuses do Olimpo”, do brother, Estêvão Ciavatta, celebrando a Olimpíada da cidade, quando tive a honra de representar Poseidon, o Deus dos Mares, ao som da sua voz.

Até que em 2017 recebi a notícia que me deixou em choque. Depois de um dia de celebração e êxtase, em que você foi homenageado com um musical, um AVC te tirou do ar. Nossa conversa estancou. 

Desde 8 de agosto, ficou a saudade e as belas lembranças. O seu lugar sempre vai ser Madureira. E sempre estaremos juntos. O show tem que continuar.

Fique em paz, meu sambista perfeito!

Rolar para cima