O relacionamento entre Estado e organizações sociais no Brasil é marcado por contradições que revelam um sistema disfuncional. Enquanto essas instituições são chamadas para socorrer o poder público em momentos de crise, são sistematicamente ignoradas quando se trata de construir políticas preventivas de longo prazo.
A dinâmica é conhecida: quando uma tragédia acontece, seja uma pandemia, enchente ou qualquer calamidade pública, o Estado rapidamente se volta para as organizações sociais. Reconhece sua capacidade de mobilização, conhecimento do território e proximidade com as comunidades mais vulneráveis. Mas assim que a emergência passa, essas mesmas instituições voltam à invisibilidade
O problema vai além da falta de reconhecimento. O Estado não consegue enxergar as organizações sociais como parceiras estratégicas na construção de políticas públicas efetivas. A lógica é sempre remediativa, nunca preventiva.
A polarização política brasileira criou um cenário onde organizações sociais são vistas com desconfiança por todos os lados. Políticos de esquerda questionam sua independência devido ao financiamento empresarial. A direita, por sua vez, enxerga essas instituições como portadoras de uma agenda progressista incompatível com suas visões.
Essa desconfiança mútua impede a construção de pontes necessárias para políticas públicas mais eficazes. O resultado é um desperdício de recursos e conhecimento acumulado que poderia beneficiar milhões de brasileiros.
A disputa pelo protagonismo
Quando governantes decidem implementar programas sociais, preferem assumir total autoria dos projetos. A lógica eleitoral se sobrepõe à eficácia das políticas. É mais importante aparecer como responsável pela iniciativa do que garantir que ela tenha o melhor resultado possível.
Essa mentalidade cria barreiras artificiais para parcerias que poderiam potencializar o impacto das ações governamentais. O Estado perde a oportunidade de usar a expertise e a capilaridade das organizações sociais, enquanto estas ficam limitadas a ações pontuais e descoordenadas.
A dependência de recursos externos, sejam governamentais ou empresariais, compromete a autonomia das organizações sociais. Manter infraestrutura, pagar profissionais qualificados e garantir a continuidade dos programas exige um fluxo constante de recursos que nem sempre está alinhado com as prioridades das instituições.
A pressão é dupla: precisam demonstrar transparência e eficiência para atrair financiadores, mas também precisam desenvolver fontes próprias de receita para manter independência. É um equilíbrio complexo que poucas organizações conseguem alcançar.
Por que habitação fica de fora
O exemplo da habitação ilustra perfeitamente os dilemas enfrentados pelas organizações sociais. Construir uma casa decente custa caro e beneficia diretamente apenas uma família, em média quatro pessoas. Com o mesmo recurso, um programa educacional ou cultural pode impactar centenas de beneficiários.
A conta é simples, mas revela a cruel realidade das escolhas que essas instituições precisem fazer. O impacto em escala se torna mais atrativo para financiadores, mesmo que isso signifique deixar problemas estruturais como habitação em segundo plano.
Para quebrar esse ciclo de dependência, as organizações sociais precisam de estratégias mais sofisticadas de sustentabilidade financeira. Isso inclui diversificação de fontes de receita, desenvolvimento de produtos e serviços próprios, e parcerias estratégicas que não comprometam sua missão.
O Estado, por sua vez, precisa superar a lógica emergencial e reconhecer essas instituições como parceiras permanentes na construção de políticas públicas. A expertise acumulada por décadas de trabalho direto com comunidades vulneráveis não pode ser desperdiçada por jogos políticos ou disputas ideológicas.
O desafio é grande, mas a alternativa é continuar com um sistema fragmentado onde recursos são desperdiçados e oportunidades de transformação social são perdidas. O Brasil não pode se dar ao luxo de manter essa disfuncionalidade quando milhões ainda vivem em condições precárias.