Quando empreender é sobreviver: o que Brasil e Portugal têm em comum

Nos últimos anos, o empreendedorismo ganhou status de solução mágica para problemas sociais e econômicos. Governos, empresas e meios de comunicação repetem que “empreender é o caminho para o futuro”, associando essa prática à inovação, à liberdade e ao sucesso financeiro. Mas, por trás desse discurso sedutor, esconde-se uma realidade incômoda: nas favelas e periferias do Brasil — e também nas margens urbanas da Europa, sobretudo em Portugal — empreender nunca foi um privilégio, e sim uma necessidade.

A economia criativa que não aparece nas estatísticas

Muito antes de o termo “startup” entrar em moda, as comunidades brasileiras já viviam de soluções criativas para driblar a exclusão. As vendas de comida caseira, as oficinas improvisadas, o comércio ambulante, os serviços de estética em casa, as pequenas mercearias — todos esses formatos de negócio fazem parte da sobrevivência cotidiana das favelas.

O que hoje é exaltado como “espírito empreendedor” sempre foi, na verdade, a forma encontrada por milhões de pessoas para resistir à ausência de políticas públicas e à precariedade do mercado de trabalho. Para a maioria desses trabalhadores, empreender não é sobre perseguir um sonho ou escalar o próximo unicórnio bilionário, mas sobre garantir a refeição do dia seguinte.

Por que trabalhar duro não basta: os números revelam a desigualdade

Nesse cenário, o discurso da meritocracia se revela frágil. A ideia de que “quem trabalha duro sempre vence” ignora os obstáculos estruturais que marcam a vida de grande parte da população. O acesso desigual à educação, ao crédito, às redes de contato e até mesmo a direitos básicos, como moradia digna e saúde, cria barreiras que o esforço individual não consegue superar.

No Brasil, dados do Sebrae mostram que 47% dos empreendedores negros tiveram seus pedidos de crédito negados, comparado a 34% dos empreendedores brancos. Além disso, 44% dos empreendedores negros tiveram seus pedidos de crédito negados no Brasil, segundo pesquisa do Banco de Desenvolvimento da América Latina e Caribe (CAF). A desigualdade vai além da negação do crédito: 22,2% dos microempreendedores negros acreditam não ter recebido crédito “por discriminação de distintas naturezas”, opção que não foi citada pelos empresários de outras raças, conforme outro estudo divulgado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Essa desigualdade não é fruto de falta de talento ou empenho, mas de um sistema que reproduz privilégios históricos. Assim, ao romantizar histórias de “superação individual”, corre-se o risco de naturalizar a injustiça social, como se todos estivessem em condições iguais de competir.

Dois países, uma herança: como o passado explica o presente

À primeira vista, Brasil e Portugal parecem ocupar lugares distintos nessa discussão. Mas, ao observar as margens sociais de Lisboa, do Porto e de outras cidades, percebe-se uma dinâmica semelhante. Nas periferias portuguesas, compostas em grande parte por imigrantes e descendentes de ex-colônias, o empreendedorismo também surge como recurso de sobrevivência.

Pequenos restaurantes africanos, cabeleireiros de bairro, vendedores ambulantes e lojas comunitárias são exemplos de como populações historicamente marginalizadas encontraram formas de sustento em meio à exclusão.

A coincidência não é aleatória. Portugal foi um dos principais impérios coloniais da modernidade, acumulando riquezas às custas da exploração de povos africanos, asiáticos e latino-americanos. Essa herança deixou marcas não apenas nos países colonizados, mas também no próprio território português. Ainda hoje, descendentes das ex-colônias enfrentam maiores taxas de desemprego, dificuldades no acesso à educação e preconceito racial.

Assim como no Brasil, a narrativa de que “quem se esforça sempre consegue” não se sustenta quando confrontada com a realidade das periferias urbanas portuguesas.

De São Paulo para “Braguil”: a nova geografia da migração brasileira

Dentro desse contexto, chama atenção a presença cada vez maior de brasileiros em bairros periféricos de Portugal. O crescimento da comunidade brasileira no país tem sido expressivo: dos cerca de 980 mil estrangeiros que vivem legalmente em Portugal atualmente, 390 mil são brasileiros, segundo dados oficiais do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). No final de 2022, o total de brasileiros girava em torno de 240 mil, o que significa um crescimento de mais de 60% em pouco mais de um ano.

Lisboa concentra mais de 77 mil brasileiros, seguida pelo Porto com aproximadamente 28 mil, mas é em cidades menores que a presença brasileira se torna proporcionalmente mais visível. Braga, que muitos chegam a chamar de “Braguil”, concentra cerca de 15 mil brasileiros que moram na cidade, algo como 8% do total de cidadãos bracarenses.

Movidos pelo sonho de melhores condições de vida, muitos imigrantes chegam ao país acreditando que terão oportunidades mais justas. A realidade, no entanto, revela um cenário muito próximo ao que já enfrentavam no Brasil.

Sem acesso fácil ao mercado de trabalho formal e muitas vezes enfrentando burocracia, xenofobia e preconceito, uma parte significativa desses imigrantes passa a empreender por necessidade. É comum ver brasileiras atuando como manicures, cabeleireiras ou esteticistas autônomas; homens que abrem pequenos serviços de construção civil, limpeza ou alimentação.

Esse empreendedorismo carrega o mesmo espírito de criatividade e resiliência das favelas brasileiras, mas também reflete a precariedade de um mercado que fecha as portas para quem vem de fora. Assim como nas comunidades do Rio ou de São Paulo, empreender nessas condições não é escolha plena — é sobrevivência.

O padrão se repete pela Europa: imigrantes como força econômica invisível

E não se trata apenas de Portugal. Em países como Espanha, Itália, França e Reino Unido, o padrão se repete. Imigrantes vindos da América Latina, da África e da Ásia encontram na informalidade e no autoemprego uma forma de se manter. Seja em serviços de estética, alimentação ou construção, esse empreendedorismo “de base” é fundamental para o funcionamento das cidades, ainda que raramente seja valorizado.

Essa semelhança revela algo maior: o peso das heranças coloniais e das desigualdades globais. Enquanto o Norte Global concentra riqueza, muitos dos que chegam dessas periferias globais acabam relegados a trabalhos informais e pouco reconhecidos — mas indispensáveis.

Criatividade, sim – mas sem romantizar a exclusão

Isso não significa negar o valor da criatividade e da resiliência das comunidades. Ao contrário: reconhecer o empreendedorismo periférico é fundamental para compreender como populações historicamente excluídas constroem alternativas, mesmo em contextos adversos.

Mas é preciso cuidado para não romantizar a pobreza. Empreender por necessidade não é sinônimo de liberdade ou de escolha plena. É um reflexo da desigualdade. Transformar essas trajetórias em exemplos inspiradores sem discutir as barreiras estruturais que as acompanham é perpetuar mitos.

O que fazer: além dos discursos, a ação

O Brasil e Portugal compartilham muito mais do que laços históricos: compartilham também desigualdades que se expressam na forma como as periferias são obrigadas a empreender. A retórica do empreendedorismo como “caminho universal para o sucesso” e da meritocracia como verdade absoluta não resiste à análise das margens sociais.

Para construir sociedades mais justas, é preciso encarar o fato de que empreender, para muitos, não é uma escolha, mas a única alternativa. Isso exige políticas públicas efetivas, combate ao racismo estrutural e à exclusão, além de reconhecimento histórico da exploração que moldou tanto o Brasil quanto Portugal.

Empreender pode, sim, transformar vidas — mas só quando acompanhado de igualdade real de oportunidades. Até lá, seguirá sendo o retrato de uma sobrevivência forçada, e não de um futuro promissor.

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