A economia que sustenta boa parte das favelas brasileiras opera fora do sistema financeiro tradicional e depende de mecanismos informais de crédito, poupança e circulação de renda.
Um novo levantamento do Data Favela — com mais de 4 mil respostas válidas em 23 estados — escancara a dimensão desse mercado paralelo, que determina padrões de consumo, risco e sobrevivência de milhões de pessoas.
A ausência de serviços financeiros formais não é um detalhe na vida das favelas. Ela molda, diariamente, decisões de trabalho, renda e mobilidade social. Segundo os dados do Data Favela, 67% das pessoas em situação de crime não possuem conta bancária, carteira digital ou qualquer produto financeiro formal, o que empurra a maior parte desse público para um sistema de crédito totalmente à margem das instituições reguladas.
Esse mundo paralelo tem regras próprias. Sete em cada dez entrevistados (74%) dependem do crédito informal como principal fonte de financiamento. Muitas vezes, isso significa tomar dinheiro emprestado de comerciantes locais, líderes comunitários, familiares ou agentes informais que definem taxas e prazos fora de qualquer estrutura regulatória. É uma engrenagem que funciona sem contrato, sem análise de risco e sem mediação institucional.
Nesse ambiente, a previsibilidade é exceção. A renda de 82% dos entrevistados é instável, variando conforme o ganho diário. O dinheiro “some rápido”: 62% dizem que não conseguem manter recursos por uma semana, enquanto apenas 9% conseguiram poupar qualquer quantia no último ano. Sem colchão financeiro, cada imprevisto se transforma em emergência.
O resultado é um sistema que se retroalimenta: a renda instável gera dependência do crédito informal, que por sua vez aprofunda o endividamento e amplia o risco. Não à toa, 48% afirmam que dívidas influenciaram diretamente sua entrada na atividade ilegal e 59% entraram no crime exclusivamente por motivos econômicos.
Nesse modelo, a circulação de capital é majoritariamente interna. Para 71% dos entrevistados, quase toda a renda fica na favela, abastecendo um ecossistema econômico local que funciona à margem das regras formais.
Sobre a pesquisa
Os dados fazem parte do “Raio-X da Vida Real”, estudo que busca entender a dinâmica social por trás da estruturação das redes e circuitos do crime a partir do ponto de vista das próprias pessoas em atividade. O levantamento foi realizado por meio de entrevista presencial, com questionário estruturado aplicado em locais onde se desenvolvem atividades criminosas, especialmente o tráfico de drogas.
Ao todo, foram entrevistadas 3.954 pessoas que exercem funções regulares no ecossistema criminoso, em favelas de 23 estados, respeitando a distribuição regional da população residente em comunidades. Trata-se da maior pesquisa já conduzida globalmente com esse público.
Tensões e oportunidades
Apesar do peso do sistema financeiro informal, há sinais de demanda por mudança. 36% mantêm um segundo trabalho legal, principalmente em funções operacionais. E há uma ambição latente: 67% querem mudar de área, 59% desejam ingressar no mercado formal e 44% demonstram interesse em cursos de capacitação.
A combinação entre informalidade financeira, renda volátil e fragilidade institucional cria um ambiente de risco elevado, mas também um mapa claro de onde a inclusão financeira pode operar. A falta de acesso a crédito, poupança e serviços básicos não é apenas um desafio social; é uma barreira concreta ao desenvolvimento econômico e à criação de novos mercados.
Os dados do Data Favela revelam um sistema financeiro subterrâneo que funciona, apesar de precário. Ele supre as demandas reais, mas cobra caro pela ausência do Estado e pela distância das instituições formais. Para bancos, fintechs e investidores, o levantamento expõe um dilema estratégico: construir soluções capazes de dialogar com a vida real das favelas sem replicar a lógica extrativa do crédito informal.
A resposta passa por um novo tipo de inclusão financeira, adaptada à volatilidade da renda, à centralidade comunitária e às dinâmicas econômicas da sobrevivência. Porque onde o sistema formal não chega, outro sistema sempre ocupa o espaço — e determina o futuro de milhões de brasileiros.