RS se recupera pela base: pequenos negócios de periferia sustentam economia

A reconstrução do Rio Grande do Sul após as enchentes depende de um ator muitas vezes negligenciado: o microempreendedor de periferia. Enquanto grandes obras movimentam manchetes, são os pequenos negócios que reativam a economia local, garantem renda para milhares de famílias e mantêm territórios inteiros funcionando.

Com dificuldade para acessar o sistema financeiro, esses empreendedores improvisam, renegociam e reabrem as portas. A resiliência individual substitui a ausência de estratégia institucional, transformando a reconstrução em um esforço de base que sustenta a recuperação econômica do estado.

Há um ano e meio, o Rio Grande do Sul viveu a maior catástrofe climática de sua história. Mais de 60% do território estadual ficou inundado, milhões de pessoas desalojadas ou desabrigadas, centenas de vidas perdidas e inúmeros negócios devastados.

O estado inteiro estava despreparado. Não havia conhecimento nem noção da proporção que as águas teriam. Moradores de regiões distantes dos rios e lagos viram do dia para a noite suas casas e negócios serem invadidos por água, sem praticamente nenhum aviso ou chance de salvar pertences, o que aumentou drasticamente os prejuízos.

Salões de beleza, oficinas, restaurantes, mercados, ferragens, negócios que sustentavam famílias foram paralisados. Os empreendedores ficaram fora de suas casas e sem suas fontes de renda.

Foi o caso de Renata Sanhudo, empreendedora da Loja Divinne Cosméticos, no bairro Cohab Santa Rita, em Guaíba. Há quatro anos com loja física, ela começou revendendo produtos a pronta entrega e, com muito esforço, foi ampliando o negócio até consolidá-lo. “O início da jornada nunca é fácil, comecei com o que tinha, idealizei tudo com carinho e foi acontecendo dia a dia até se transformar no que somos hoje”, conta.

Renata Sanhudo: “O início da jornada nunca é fácil, comecei com o que tinha, idealizei tudo com carinho e foi acontecendo dia a dia até se transformar no que somos hoje”

Em maio de 2024, a água invadiu a loja e também a casa da família. “Perdi muitas coisas, desde armários a produtos. Era o meu sonho ali, vendo tudo acabado. O prejuízo passou dos R$ 10 mil, todo o meu esforço estava ali.” Foram 30 dias de portas fechadas e o trauma de ficar desalojada junto com todo o bairro.

A retomada exigiu resiliência. Renata recebeu apoio do Sebrae e das marcas com que trabalhava, que adiaram boletos e ofereceram prazos mais longos, além de uma ajuda com reposição de produtos. Mas quando buscou apoio público, não teve sucesso. “Preenchi um formulário, selecionei comércio e me negaram. Quando questionei, disseram que era só para residência.”

Ainda assim, não parou. Reabriu o quanto antes, fez promoções, apostou na internet e contou com a fidelidade dos clientes. “Mesmo quem também tinha sido atingido queria continuar se cuidando. Afinal, eu entrego autoestima e beleza nos meus produtos.”

História parecida viveu a Ferragem Pedroso, também na Cohab Santa Rita. Há 19 anos no bairro, o negócio familiar emprega cinco pessoas e foi surpreendido pela água sem qualquer aviso prévio. “Quando vimos, já estava na esquina. Não tivemos tempo de salvar nada. Peguei só a pasta de boletos e o carro da loja”, lembra Renata Pedroso, filha do fundador.

O prejuízo passou de R$ 100 mil, e a ferragem ficou 15 dias fechada. O capital de giro da família ajudou na retomada, mas ver os comércios de amigos sem a mesma segurança foi complicado. “Muita gente que perdeu tudo não conseguiu apoio. Outras, que não estavam na área atingida, receberam. Isso precisa melhorar”, afirma.

Se por um lado faltou suporte, por outro a comunidade foi determinante. Familiares, vizinhos e clientes ajudaram na limpeza e na reorganização. “O bairro inteiro sofreu. Quem não tinha ninguém por perto ficou sem apoio. Nós tivemos a sorte de contar com essa rede.”

Renata Pedroso: “Quando vimos, já estava na esquina. Não tivemos tempo de salvar nada. Peguei só a pasta de boletos e o carro da loja”

Essas histórias revelam o que é ser empreendedor de periferias: viver entre a instabilidade, a resiliência e a criatividade. Falar em reconstrução é também falar em resiliência climática, inclusão produtiva e políticas públicas que conectem a favela ao ecossistema econômico.

Cada barbeiro que volta a cortar, cada manicure que retoma sua clientela, cada comércio que reabre suas portas simboliza muito mais do que atividade econômica: representa a reativação da esperança coletiva de um território inteiro.

Um ano e meio depois, o Rio Grande do Sul ainda está em reconstrução. Obras, investimentos e políticas públicas são fundamentais, mas é impossível pensar em futuro sem olhar para os microempreendedores. É importante garantir que essas trajetórias não fiquem pelo caminho.

Rolar para cima